As hegemonias não surgem do nada. Elas são construídas, um milímetro de cada vez, como um muro erguido com tijolos carregados de suor, convicção e a capacidade de resistir a tempestades. A recente conquista do Flamengo, sendo o primeiro clube brasileiro a ganhar a quarta Libertadores, me fez refletir sobre o que muitas vezes é evitado nas discussões: o levantamento silencioso que precede o grito de campeão. A história contemporânea do Flamengo inicia em 2012, quando o clube decidiu, através do voto, escrever um novo capítulo e dar início a uma transformação estrutural.
Aqueles que somente observam os títulos enxergam apenas o resultado final. Já quem vivenciou o processo sabe que a vitória nas eleições foi o primeiro passo em direção a uma mudança cultural significativa. A partir disso, começou a construção desse "muro". Lembro do forte simbolismo da campanha dos tijolinhos para o Centro de Treinamento, onde pessoas não apenas doaram dinheiro, mas também esperança, acreditando em um projeto maior do que si mesmas.
Construir uma muralha institucional requer mais do que tijolos; necessita de paciência, visão, frieza, estratégia e a capacidade de administrar a ansiedade, especialmente em um país onde a pressa frequentemente destrói oportunidades. O Flamengo precisou de todas essas qualidades para sobreviver a crises, derrotas, disputas políticas, divergências internas e mudanças dolorosas. Foram tomadas decisões difíceis, escolhas impopulares e rupturas inevitáveis. Com humildade, afirmo que contribuí também com meu "tijolinho" ao servir como executivo de futebol do clube. A obra não parou, mesmo quando parecia que tudo estava desmoronando.
No entanto, existe um fator frequentemente negligenciado, mas essencial para qualquer hegemonia duradoura: a habilidade de controlar a própria vaidade. Ao longo da última década, os líderes do Flamengo enfrentaram um desafio raro no futebol brasileiro: a contenção do ego nas vitórias, o controle da sede de poder quando estavam fora da gestão e a prevenção de que disputas políticas contaminassem o resultado final. É inegável que, de alguma forma, conseguiram. Colocaram o Flamengo acima de ambições pessoais, um desafio nem sempre simples ou comum.
É preciso reconhecer também a frieza necessária para tomar decisões que podem ser politicamente impopulares. Uma instituição que busca grandeza deve ter a coragem de escolher o que é certo, não apenas o que é popular. O Flamengo fez isso repetidamente, tomando decisões difíceis no futebol, política interna, finanças e na gestão do elenco, sempre em diálogo com a própria torcida. Não existe hegemonia sem coragem; não existe muro sem concreto.
Por fim, nenhuma narrativa do Flamengo atual pode ser contada sem abordar a profunda dor causada pela tragédia do Ninho do Urubu. A perda dos jovens deixará cicatrizes eternas no clube, no futebol brasileiro e em todos nós. Nenhum título pode diminuir a gravidade daquela tragédia. Foram vidas interrompidas cruelmente, sonhos destroçados e famílias devastadas. Esses meninos merecem ter seus nomes eternizados na história do clube mais do que qualquer artilheiro ou dirigente. A maturidade atual do Flamengo se reflete na confiança que o clube deu a um jovem treinador talentoso, resultando na conquista da Libertadores logo em seu primeiro ano como profissional.
Isso não ocorre por acaso; é fruto de uma estrutura sólida. E deixo uma pergunta incômoda: quantos clubes brasileiros possuem um potencial semelhante, mas desperdiçam suas chances em brigas internas, vaidades, projetos interrompidos e a impaciência constante das torcidas? A resposta é dolorosa, pois sabemos que são muitos. Se existe um muro que protege um clube, ele é construído de cultura, governança, memória e da determinação de pessoas que não desistem do projeto.
Esse muro resiste a mudanças de nomes e sobrevive a eleições, sustentando uma verdadeira nação. O tetra da Libertadores está sob bons cuidados, tanto dentro de campo quanto fora dele, principalmente naquilo que não é visível, mas que define tudo: a construção coletiva de uma grande instituição.




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