O sonho de Didi: a questão do técnico negro

14/8/2015 10:45

O sonho de Didi: a questão do técnico negro

O sonho de Didi: a questão do técnico negro
A questão do técnico negro ocupa um lugar estratégico na luta pela democratização das relações raciais na sociedade brasileira. Em torno dela giram interesses arraigados, estereótipos duradouros e estruturas persistentes, que mantêm o caráter assimétrico da interação envolvendo brancos e negros dentro e fora da esfera do futebol. A pesquisa histórica acerca do tema tem procurado retraçar as etapas percorridas por uma batalha que remonta a Domingos da Guia, inclui Djalma Santos e encontra na reivindicação do cargo de treinador da Seleção Brasileira, feita por Didi, o exemplo paradigmático dos limites traçados à aspiração dos negros que, uma vez penduradas as chuteiras, projetaram-se na nova profissão. A imprensa esportiva, de modo geral, atribuía o insucesso da empreitada ao simples acaso, às circunstâncias adversas, ou, ainda, à inaptidão para o exercício do cargo. Convém, porém, empreender o esforço para expor a questão sob uma nova luz.

Com efeito, segundo a hipótese aqui defendida, mais do que interditar o acesso ao posto de técnico, as linhas de cor no futebol canalizavam as trajetórias dos negros para áreas específicas da atividade futebolística onde a sua presença, por assim dizer, mostrava-se mais integrada à "ordem natural das coisas". Estas áreas podem ser assim enumeradas: 1) as categorias de base nos aparelhos de produção dos clubes; 2) as equipes pequenas e do interior em busca de promoção nas competições; 3) as escolinhas de futebol mantidas pelo poder público para jovens e adolescentes nas regiões mais desprivilegiadas da cidade; 4) a eterna condição de técnico interino das principais agremiações do país.

O episódio relativo às declarações públicas de Cristóvão Borges a respeito do racismo no futebol insere-se no último item. Elas possuem o mérito de explicitar parte do mecanismo através do qual a posição do técnico negro em um clube de projeção nacional como o Flamengo vai sendo, pouco a pouco, minada, e isto não apenas pelas manifestações abertas e estridentes de racismo nas redes sociais ou nas arenas esportivas, mas, sobretudo, por críticas especializadas que mesclam a abordagem de aspectos táticos com a análise de questões extrínsecas à meritocracia. Situadas no terreno da ambiguidade, as estratégias veiculam e propagam a mensagem destinada a reassegurar o leitor, o ouvinte ou telespectador da suposta verdade contida na disjunção estabelecida pela ideologia racial entre o ex-atleta negro e o treinador dos assim chamados grandes clubes. Pois, de fato, não se trata de simplesmente bloquear o acesso à profissão em tela. O racismo no campo do futebol, para citarmos Florestan Fernandes, traça linhas invisíveis de especialização, configurando, dessa maneira, áreas de aceitação, zonas de exclusão, espaços mais abertos à negociação.[1]

De fato, posto nestes termos, podemos observar a existência de um padrão de comportamento que se mantém e perpetua ao longo do tempo. Dois exemplos escolhidos ao acaso: no início dos anos setenta, o Botafogo dirigido por Leônidas foi vice-campeão brasileiro, e mais recentemente Andrade esteve à frente do Flamengo na conquista do título nacional. Mas logo em seguida ambos acabaram demitidos. Um revés em uma competição muitas vezes basta para decretar o fim da interinidade em que se encontra de forma permanente o técnico negro. Se a pressão decorrente da súbita eliminação em um torneio torna compreensível, embora não necessariamente justificável, a demissão, o fato de que ele não encontre a chance de prosseguir na profissão noutro clube de expressão constitui o cerne do problema. De fato, após realizar um trabalho convincente em um grande time o técnico negro quase sempre se vê constrangido a regredir na carreira, quer reassumindo as categorias de base do clube que o projetara, quer dirigindo uma esquadra pequena que o condena ao ostracismo.

A esfera do futebol, portanto, impõe um padrão de comportamento, estabelece uma dinâmica racial, define um conjunto de linhas de especialização para o treinador negro, criando dificuldades para a mobilidade vertical. Mas estas linhas, como assinalado acima, não têm como finalidade principal barrar a entrada do ex-atleta negro no campo da nova profissão, mas, sim, canalizar-lhe a trajetória, orientando-a para os lugares predeterminados, a saber: as escolinhas de futebol, as categorias de base, os clubes pequenos, as agremiações do subúrbio, ou, mesmo, as equipes de menores "infratores" e times do cárcere. Em cada uma destas esferas de atuação, são-lhe designadas funções específicas, respectivamente: descobrir novos talentos; promover de série a equipe pequena; educar e entreter jovens e adolescentes marginalizados; ressocializar os prisioneiros; ou, ainda, quando nos grandes clubes, desfrutar da condição de eterno interino. Aqui, a figura do treinador negro parece deslocada, fora de lugar, contrária à lógica cultural que orienta o olhar e naturaliza a cena. Talvez seja auxiliar técnico em um time de massa, porém, dificilmente treinador da Seleção Brasileira.

José Paulo Florenzano, especial para o ESPN.com.br*
* professor de Antropologia da PUC-SP e autor do livro "A Democracia Corinthiana" e do artigo"Futebol e racismo: o mito da democracia racial em campo"


________________________________________
[1] Fernandes, Florestan (2008) A integração do negro na sociedade de classe. São Paulo, Editora Globo.

661 visitas - Fonte: ESPN


VEJA TAMBÉM
- Flamengo escalado para o jogo contra o Amazonas
- DIA DE ESTREIA NA COPA! Veja a provável escalação do Flamengo na estreia da Copa do Brasil!
- Gabigol retorna e Viña e Lorran são novidades na escalação do Flamengo




Instale o app do Flamengo para Android, receba notícias e converse com outros flamenguistas no Fórum!

Mais notícias do Flamengo

Notícias de contratações do Flamengo
Notícias mais lidas

Comentários do Facebook -




Nenhum comentário. Seja o primeiro a comentar!

Enviar Comentário

Para enviar comentários, você precisa estar cadastrado e logado no nosso site. Para se cadastrar, clique Aqui. Para fazer login, clique Aqui ou Conecte com Facebook.

Últimas notícias do Mengão

publicidade
publicidade
publicidade
publicidade

Libertadores

Qua - 21:30 - -
X
Flamengo
Palestino

Carioca

Dom - 17:00 -
1 X 0
Flamengo
Nova Iguaçu